Ligue 98

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Com: Sergio Seixas

Aníbal Gonçalves: Espionagem familiar

23/11/2021 as 11:36

Leio, entre espantado e estarrecido, uma notícia nos jornais do dia que me deixou de cabelo em pé, descoroçoado e até um tanto quanto triste. O fato, meus amigos e minhas amigas, é que está se tornando cada vez mais uma atitude bastante frequente em nossos dias, os pais espionarem, fuçarem a vida de seus próprios desdobramentos celulares, com o objetivo de descobrirem se os filhos e as filhas andam se comportando normalmente como manda o tradicional figurino, seguindo as normas, padrões e regras estabelecidos. Em suma, os cuidadosos genitores querem ter nas mãos o controle total sobre os seus rebentos e a privacidade deles que se dane. Afinal, o preço da segurança é a eterna vigilância. Esses pais querem saber, nos mínimos detalhes possíveis, tudo o que fazem ou deixam de fazer os seus adolescentes pimpolhos quando botam os pés fora de casa, para tomarem as devidas providências caso algo estiver fora do que consideram o bom caminho.
Pois é, vejam a que ponto chegamos nesse despautério geral. Já não se fazem nem mais existem pais e filhos como antigamente. O mundo muda feito a moda. E os costumes também. Não sei se para melhor ou para pior, mas muda. É incontestável. Assim como os chamados laços de família. As relações entre pais e filhos – salvo honrosas exceções, assumiram um caráter burocrático, formal, despido das nuances da intimidade, no qual manda, reina quem pode e obedece quem tem juízo. Até parece que o núcleo familiar, tão decantado em prosa e verso não é mais aquele a que estávamos habituados. Virou uma espécie de empresa com patrões e funcionários e relógios de ponto. Os pais, assoberbados pelos inúmeros compromissos do trabalho, foram pouco a pouco apelando para a saída mais fácil, terceirizando o poder pátrio, delegando-o aos professores, aos técnicos dos esportes que os filhos praticam. E, finalmente, no frigir dos ovos, quando a barra pesa de verdade, aos cuidados dos psicólogos e dos psiquiatras. O que existe, de fato, de órfãos de pais vivos soltos por aí realmente não se encontra no gibi. Uns porque já foram abandonados mesmo antes de nascerem. Outros, porque os pais não têm tempo disponível para tomar de conta dos seres que botaram no mundo. E o que é pior, isso sói acontecer de alto a baixo da pirâmide social, independente de classe, de nível cultural, de renda, de cor, de religião. Os pais parecem estar perdidos no mato sem cachorro, distanciados anos-luz de suas funções primordiais que são as de ensinar, reprimir, impor limites, dar amor e segurança. 

Sou de uma geração em que o pai era o chefe e senhor absolutista do clã familiar. Sua palavra era o sinônimo de lei, que devia ser rigorosamente obedecida, cumprida sem qualquer discussão, sob pena de entrar na peia e dar literalmente a mão à implacável palmatória, na base do “quem come do meu feijão, prova do meu cinturão”. Era proibido permitir, com o sim riscado do nosso vocabulário cotidiano. Proibido brincar no meio da rua. Proibido jogar sinuca no bar do “Dirceu Paca” ou freqüentar a Vila do Reino, alcunha da zona boêmia da minha terra natal Coroaci. Proibido escutar ou se intrometer na conversa dos adultos. 
Até completar os meus dezoito anos e adentrar os portões da universidade, tinha eu hora marcada para tudo – e, por muitas vezes, determinações dadas pela minha saudosa tia Sinhaninha. Pra voltar pra casa quando saía de noite. Não podia passar das dez badaladas do sino da igreja Matriz de Sant’Anna e, se porventura me atrasasse por algum motivo alheio à minha vontade, de nada adiantava fornecer explicações as mais lógicas e razoáveis. 
Creio que a relação entre pais e filhos, para ser eficientemente educativa, há de ser construída com carinho e cara zangada, com admoestações e elogios, com respeito mútuo, com dureza e suavidade, com uma intimidade tal que permita confissões e confiança, que assegure aos filhos a proteção suficiente, capaz de se tornarem adultos maduros para o convívio social.

Sobre o colunista
Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci - MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO e professor na Escola Estadual Alfredo Sá, em Teófilo Otoni. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni) e cerimonialista.